domingo, dezembro 09, 2007

Homem-anta

O acampamento ficava na beira de um córrego com densa mata ciliar, no coração da Bodoquena, Mato Grosso, ano da graça de 1975, se não me falham os neurônios. Quase 17h00, as equipes de campo já tinham regressado, menos uma, a do Gilsinho*.
De repente, o silêncio do entardecer bucólico do cerrado foi quebrado. O barulho indicava que um bicho de grande porte avançava pelo córrego, aproximando-se do acampamento. A um sinal do chefe do projeto, dois peões empunharam as espingardas calibre 38 e se postaram estrategicamente na embocadura da última curva do leito, onde o bicho se faria visível à mira. Pelo barulho descuidado e apressado, ninguém duvidava de que era uma anta, provavelmente em perseguição ao filhote desgarrado. De qualquer forma, era absolutamente estranha a situação. Os animais não costumam dar bandeira assim. Mas enfim...
Dez minutos depois, o barulho tornou-se tão intenso, que todos correram para assistir ao inevitável abate, já que, além da ameaça ao acampamento, uma anta proveria carne de excelente qualidade para muitos dias.
Quando a marola do bicho atingiu o barranco dos atiradores, estes apuraram as vistas e só o esperavam apontar a cabeça na curva para a execução. Seriam dois tiros convergentes e fatais. A anta não teria a menor chance.
Respiração suspensa... Dedos em riste nos gatilhos... Mira fixa na curva... É agora! E então... Gilsinho surge feito uma anta na curva do córrego, caindo sobre as pedras e quebrando galhos, provocando uma barulheira dos demônios. Por pouco, muito pouco mesmo, os atiradores não abriram fogo. Segundo eles, o que salvou mesmo o Gilsinho foi a camisa vermelha.
O Juca*, chefe do projeto, bocão como ele só, foi ao encontro do homem-anta:
- Gilsinho! Seu filho de uma anta! Tu não tem juízo não, porra? Quer levar um tiro, é? Que diabo aconteceu? Por que você veio por dentro do córrego? Cadê seu carro e o motorista?
Gilsinho, com a cara mais simplória do mundo, sem nenhuma ruga de preocupação, revelou que o Toyota em que ele e o motorista voltavam ao acampamento ficara enganchada num tôco, na passagem de uma cancela, a cerca de cinco quilômetros dali, pela estrada. Então, para ganhar tempo, viera pelo vale, cortando pelo menos dois quilômetros. Juca não entendeu direito:
- Peraí Gilsinho. Como é que é a história? O jipe enganchou num tôco? Como assim?!
- É Juca. Não tem aquele tôco que fica no chão, entre os mourões, para segurar a cancela? Então... Esse tôco era muito alto e pegou no diferencial do Toyota. O bicho travou de tal maneira que não vai nem pra frente, nem pra trás. Nem reduzindo a primeira o carro venceu o tôco! Tá lá entalado. Falei pro Miranda* (o motorista) não fazer nada e aguardar socorro.
Juca passava as mãos pelos cabelos, sem acreditar no que ouvira, pois, conhecendo o Gilsinho, já deduzira o ocorrido. Mesmo assim perguntou.
- Veja se eu entendi bem. O carro ficou entalado no tôco e não vai nem pra frente nem pra trás. É isso mesmo?
- Hã hã...
- Só mais uma coisinha, seu carro tem macaco?
- Hã hã...
- E vocês não tentaram usar o macaco não? Pra suspender o carro....
Aí, foi o Gilsinho que fez a maior cara de surpresa do mundo:
- Ué! Mas eu não sabia que podia usar o macaco pra isso... Pensava que macaco só servia pra trocar pneu! O motorista ainda sugeriu, mas eu não deixei...
Acredite se quiser.
Juca ia dar um esculacho, mas daí se lembrou que diante dele estava uma pessoa que teve de superar um grave acidente de carro, no passado, que lhe lesou parte do cérebro. Resolveu não discutir e despachou um motorista pra resgatar o Toyota do Gilsinho e seu motorista que, pelo visto, devia ter alguma lesão cerebral também. Disse simplesmente:
- Tá bom Gilsinho. Vai tomar seu banho, que nós vamos resolver essa bronca. E vê se passa mertiolate nesses arranhões!
Quando o Gilsinho se afastou, a turma caiu na risada e a vida voltou ao normal no acampamento, sob os últimos pios das siriemas e das juritis, antes da noite cair de vez, naquelas vastidões matogrossenses.

* Nomes fictícios

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