Uma das lembranças mais gratas que guardo da infância, são os doces assobios de meu pai.
O velho vivia assobiando.
E, para falar a verdade, não me recordo de nenhuma música em especial que ele entoasse. Apenas me lembro que era um trinado contínuo, um fiu-fiu baixinho, ensimesmado, que nunca supus fosse soar tão alto em minhas saudades.
Na época, o fato não me chamava muito a atenção porque, é isso que quero dizer, assobiar era um hábito corriqueiro da gente da minha cidade, Paramirim. É raro você circular pela cidade e não ouvir um solo de assobio, que pode ser um samba-canção, gênero muito apreciado no lugar, ou uma música carnavalesca, ou o que seja. Não conclua daí tratar-se de uma gente alegre ou triste. Nem diria também que aqui vale aquela máxima de que quem canta seus males espanta. Minha gente assobia simplesmente porque gosta. Mas, se preferem impor uma máxima, digamos que quem canta seus males exprime. Não rima, mas é menos dramática e mais realista.
Quando aportei em São Paulo, dezembro de 1968, entre outros choques culturais, me deparei com um povo sisudo que não assobia. Por isso me incomodava chamar a atenção para meus assobios, em mim tão naturais. Muito tímido e discreto, acabei me cerceando e reservando meus trinados aos momentos de recolhimento, longe de curiosos.
O tempo que desde então passou jamais sepultou em mim esse hábito atávico, instintivo. Girei esse país imenso procurando o que não perdi, como dizem dos geólogos por aí, e de vez em quando surpreendia a surpresa de alguém me ouvindo assobiar despreocupadamente, um tango, um bolero ou um samba de reis da minha terra. E, invariavelmente, associavam o fato, ao fato de eu ser baiano, de ter a música no sangue, esses clichês, que vocês conhecem bem.
É... Pode ser.
Certa vez viajava eu, plácido e sereno, num ônibus noturno do interior de Goiás para a capital, quando ainda não havia MP3 player e que tais. Lá pela tantas, alguém começou a executar, num solo maravilhoso, o chorinho “Saxofone por que choras?”, do grande Abel Ferreira, música que me toca a alma. E o nosso artista se esmerava, dando conta, com recursos impressionantes, do sax, da flauta, do violão e sua baixaria e até do pandeiro ele emulava as patinelas sofridas. Eu me deleitava com aquela sonoridade toda e, bem baixinho, na minha, arriscava uns acompanhamentos discretos, lá do meu cantinho, para não atrapalhar aquela verdadeira orquestra assobiônica.
Mas cada um é cada um e nem Jesus agradou a todos, quanto mais um artista anônimo e improvisado num busu noturno naqueles confins de Goiás. Deu-se que alguém foi se queixar ao motorista. Este, como um verdadeiro juiz de paz, parou o ônibus, acendeu as luzes e falou que tinha alguém assobiando alto e que aquilo estava incomodando umas pessoas e que por favor fechassem o bico e que ele esperava ter sido bem claro.
Bem claro o senhor foi, apresentou-se o tal, mas eu vou ser mais claro ainda. Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe quem foi reclamar com o senhor. Agora veja bem, o bico é meu e eu abro e fecho ele na hora que eu quiser. Eu nasci e vou morrer assobiando. Pois hoje eu vou assobiar até rachar o bico e se o senhor quiser, pode ir direto pra delegacia que eu quero ver quem vai me impedir de assobiar. E tem mais, na minha mala tem uma peixeira de 12 polegadas. Toda vez que eu tiro ela da mala o sangue corre. Será que fui claro?
Ante o silêncio sepulcral, o juiz de paz disse que não queria confusão, mas que por favor, assobiasse mais baixo um pouquinho. E foi cuidar de sua direção.
Mas acho que a raiva fez o bico inchar, prejudicando o desempenho da orquestra. Depois de umas duas desafinadas do clarinete, nas notas altas, o assobiador se abusou e se recolheu. E todos dormimos em paz.
Depois das voltas de toda uma vida, fechei o ciclo de minhas andanças, retornando para minha Bahia, para Salvador, sendo mais exato. E aqui voltamos ao começo da história, porque uma das boas coisas (entre outras, claro) desse meu retorno, foi reencontrar essa gente que gosta de assobiar. Pelos corredores da Empresa, pelas ruas da cidade, no calçadão da praia, em todos os lugares você certamente vai se deparar com alguém solando uma canção no bico. Até nos banheiros, você escuta alguém fazendo xixi e assobiando, na maior tranquilidade. Eu acho uma delícia e até retomei meu velho hábito, recolhido há mais de 40 anos. Portanto, ao ouvir um assobio anônimo, em alguma rua da Boa Terra, pode ser eu.
Meu velho pai já não assobia mais, mas eu lhe herdei esse hábito que há de morrer comigo, como o destemido assobiador do ônibus, que, pelo sotaque, bem poderia ser baiano. Talvez assobiar seja uma faceta da musicalidade tão generosa por aqui. Por que não?
Se levarmos o caso por aí, não há como não falar, também, de outro hábito baiano, que carrego desde sempre: cantarolar ao chuveiro. Tem até uns causos curiosos a respeito, mas aí já é uma outra história.